O Lótus - Capítulo IX
Iniciados
Haline procurava se concentrar no trabalho que tinha a fazer. Ela veio de uma terra distante, a convite do rei Topa Capac, para estudar a magia de uma pequena tribo misteriosa chamada "Tiró". Fazia parte de uma seita cujos monges viviam em contato direto com a natureza, retirando dali sua magia, seu alimento, sua orientação. Conhecidos como quéltis, eram pacíficos e pregavam a prática do bem e a vivência dentro dos preceitos do amor. Costumavam ser vistos com mantos que cobriam o corpo inteiro.
Mas um destino incomum estava reservado para ela. Quando mais nova, uma sequência de sonhos estranhos passou a atormentá-la. Em todos eles, Haline se via misturando dois líquidos escuros e mau cheirosos, enquanto o céu escurecia gradualmente.
Sempre recorria à mestra suprema de sua religião, a venerável senhora Selma, para buscar esclarecimento. Após certo tempo, a mestra começou a se preocupar e aconselhou a discípula a manter segredo. Ela deveria consultá-la dessa forma, discretamente, num regaço mais isolado da floresta, onde apenas as entidades mágicas pudessem ouvi-las.
Assim se passou, até que a natureza completasse um ciclo. Selma sabia que tinha de tomar uma decisão. Chamou por Haline e disse que faria uma peregrinação, em busca de orientação, pois intuia grande importância nesses sonhos. Além disso, havia reparado num interesse maior das plantas sempre que elas tocavam no assunto.
Partiu logo em seguida, levando apenas seu manto e suas indagações. Não contou à discípula, mas lhe era claro que a união dos líquidos estava relacionada com a união dos opostos, entre masculino e feminino. Estaria sua pupila destinada à alguma missão de união? Apesar de algumas mensagens claras, deveria eliminar as sombras da dúvida que ainda permeava sua mente.
Com o passar dos dias, Haline se sentia cada vez mais só. Era muito bela, olhos azuis e pele clara, límpida, que chegava a cegar quando retirava o capuz e mostrava seu rosto ao sol. Havia perdido os pais ainda cedo, na invasão de um exército dominador. Foi entregue à Selma para se tormar uma monja, até ter idade suficiente para se casar. Vivia em contato constante com a natureza e a grande mãe. Poucos notavam sua beleza, pois seu sacerdócio era exclusivo para mulheres, e seu manto a protegia dos assédios da luxúria. Mesmo assim, alguns homens, notadamente os bravos guerreiros quéltis, já haviam lhe cortejado. Voltavam decepcionados, recebendo sempre respostas negativas. Só lhe restava agora a grande mãe. Ela deveria ser sua guia, pois os sonhos não a deixavam e a ansiedade era crescente.
______________
Mais uma vez sua mente lhe pregou uma peça. Não poderia se distrair tanto assim.
- Concentre-se, Haline. - dizia para si mesma - Concentre-se!
Começava a se arrepender de ter vindo. De ter aceitado o convite do Rei. Mas, já que veio, tratou de continuar o trabalho. Sua virtude era a perseverança. Nunca desistia do que tinha começado. O rei havia lhe pedido para estudar a natureza mágica das plantas, seja através da interação, ou da fermentação e do cozimento. O tempo urgia. Um grande mal estaria chegando, todos os videntes assim diziam. Seus próprios sonhos lhe falavam da escuridão do céu.
Topa lhe concedeu um laboratório exclusivo, notadamente equipado. Dia após dia, se entregava ao trabalho, sozinha. Não aceitava assistentes. Até porque esse serviço, no reino, só era realizado por homens, e ela não confiava neles. Dia após dia retirava-se, ao fim do trabalho, para seus aposentos sem nada de conclusivo. Parecia que as plantas daquele lugar se recusavam a falar com ela.
- Amanhã vai dar certo. Amanhã vou entender alguma coisa da magia desse lugar - disse, antes de adormecer.
O sol resurge. Haline desperta de seu sono. Escuro. Por um momento, não se lembra de onde está. Cadê o canto dos pássaros? Onde está a brisa da floresta? Aquele calor terrível a incomodava. Sentia-se como um peixe fora do rio. Sentou-se em seu leito, naquele lugar abafado. Procurou se acalmar e orou à grande mãe. Seu coração, desacelerando, permitiu que sua mente se reorganizasse.
- Sim, claro! - Pensou - O palácio do rei Topa. Ah... Que falta me faz as colinas!
A saudade de seu lar, apesar de tudo, não impedia que reunisse forças para se levantar e tentar mais uma vez, mais um dia. Após se arrumar, seguiu rumo ao laboratório. Nos corredores, haviam rumores de um estranho, capturado. Como o defeito de Haline era a curiosidade, não resistiu e, sutilmente, procurou ver como era esse prisioneiro. Viu de longe, mas não o achou perigoso. Parecia tranquilo e resignado. Caminhava sóbrio, escoltado pelos guardas, até sua cela.
Findo o espetáculo, Haline volta a seu laboratório, decepcionada. Não havia acontecido nada demais. Naquele dia, a desconcentração era enorme. Não sabia mais o que fazer. Antes de escurecer, decidiu pedir uma audiência com o rei. Topa Capac a atendeu de imediato.
- Alguma novidade, Haline? - perguntou o rei, à certa distância dela, como acontece com todos que entram na sala do trono.
- Meu rei, não consigo falar com as plantas daqui. Preciso me comunicar com alguma sacerdotiza ou mago que já conhece seus segredos.
- Impossível no momento. Não desista, minha jovem. Na hora certa falará com o mais sábio de todos os feiticeiros tirós. Não cobro resultado, apenas paciência e trabalho. Se for determinada, na hora certa a verdade é quem buscará pela sua procura, e não o contrário.
- Entendo, meu rei. No entanto...
Antes que terminasse de falar, batem à porta.
- Entre! - brada o rei.
A porta se abre. Um soldado entra e anuncia, depois de se curvar.
- Meu rei, capturamos mais um. Creio ser um feiticeiro! Aqui está seu jamanxim. Os homens temem abrí-lo, temendo alguma maldição!
- Vê, minha criança? Parece que a hora chegou. - diz o rei.
E, dirigindo-se ao guarda:
- Muito bem! Deixe o jamanxim. Quanto ao filho de Quityambó, peça ao ancião para trazê-lo.
-Sim, senhor! - diz o soldado, antes de se retirar, deixando os pertences do suposto "feiticeiro" num pedestal próximo à porta.
- Já é tarde, Haline. Vá, descanse. Amanhã, encontrará o feiticeiro.
- Sim, senhor. Senhor, peço sua licença para estudar os pertences do feiticeiro.
Com um sinal de mão, Topa consente e ordena sua retirada. Haline declina, apanha o jamanxim e se retira.
Um feiticeiro. Ela se entusiasmava cada vez mais em conhecê-lo. Seu coração havia disparado. Sensação que nunca havia experimentado. Como ele seria? Que poderes possuia? Será que compreenderia sua lingua? Seria ele belo?
- Belo? Que bobagem! - pensou, enquanto ria de si mesma.
Já em seu leito, não consegue dormir. Revira-se de um lado a outro enquanto observa, em alguns relances, os pertences do feiticeiro capturado. Como não poderia deixar de ser, a curiosidade supera seu temor de alguma maldição e a impele a abrí-lo. Nota uma garrafa rústica, feita de couro de um animal estranho e amarrada com fibras de alguma planta. Está claro que há um pouco de líquido dentro. Guarda de volta no jamanxim, veste seu manto e, sem vacilar, dirige-se para seu laboratório.
Lá chegando, deixa os pertences na sala vizinha do laboratório enquanto trata de acender os candelabros para iluminar o recinto. Quanto volta para apanhá-lo, ouve um ruído estranho, mas está tão fascinada com sua investigação que ignora.
A primeira coisa que faz é retirar e abrir a garrafa. Sente seu cheiro, amargo.
- Alguma coisa está estragada aqui. - Pensa.
De repente, ouve um grito assustador, numa língua estranha. Vira-se e se supreende com o feiticeiro avançando sobre ela. Solta a garrafa e tenta fugir, mas ele logo a alcança. Eles rolam no chão. Então, sem entender o motivo, ele se afasta dela, assustado, parando próximo de um candelabro maior. Nesse momento, ela pôde ver seu rosto.
- É lindo! - pensa, ainda paralizada.
Os guardas entram, o feiticeiro foge. Ainda desnorteada, Haline se levanta e percebe que a garrafa não está mais no chão. Um gota do líquido apenas, havia escorrido. Com o dedo indicador ela a apanha e, colocando-se mais próxima da luz, constata assombrada:
- Um dos líquidos do meu sonho!
continua quarta-feira, 11h da manhã (GMT-3:00 Brasília/Brasil)