O Velho

Caminhando...

quarta-feira, novembro 26, 2008

O Lótus - Capítulo V

Esperança e Fé

 

Muitas pessoas paravam para ver o prisioneiro ser carregado. Naró nunca havia visto tanta gente junta, nem tanta curiosidade. Apesar de estar suspenso pelos dois homens que o capturaram, dava pra sentir que o chão da tribo era duro, talvez feito de pedra. Não via muito, já que seus carregadores o suspenderam acima de suas cabeças, barriga para cima. O céu estranhamente cinza, sem luz, parecia obscurecer também suas esperanças.

 

Quando criança, gostava de olhar as formigas. Caminhavam juntas, todos os dias, certas de encontrar as folhas e insetos que precisavam. Cada dia de trabalho era certeza de recompensa. Eram sempre unidas e o formigueiro sempre abastecido. Certa vez, numa manhã de primavera, o sol brilhava convidativo a um passeio e Naró passou para ver suas queridas amigas. Atisuanã já observava o menino, pois via nele um possível discípulo. Sua intuição o dizia para seguí-lo. Mas, quando Naró chegou no lugar do formigueiro, um buraco estava em seu lugar, sem nenhuma delas por perto. Uma cena chocante para um menino tão novo. No entanto, Naró não era um menino qualquer. Sempre curioso, não se deixava abater e começou a observar os sinais: Pegadas de algum animal enorme, do tamanho de um homem, e com garras. Seguiu-as, até escutar um barulho. Abriu caminho no mato baixo até encontrar a razão do sumiço: Um enorme tamanduá, que fugiu assim que o viu. Naró ficou estático. Sabia, agora, que não veria mais suas companheiras. Quis chorar, mas segurou as lágrimas quando lhe veio a idéia de que algumas delas ainda poderiam estar vivas. Voltou ao formigueiro e cavou mais. Nada. Insistiu um pouco mais, sem sucesso. Olhou ao redor e viu um pedaço de casca de palmeira. Correu para apanha-la, a fim de cavar com mais facilidade.  Sua persistencia rendeu frutos quando encontrou a rainha, alguns ovos e várias operárias, perdidas. Como animais domesticados que reconhecem seu dono, as formigas pareciam ter recuperado a esperança, começaram a se reagrupar. Naró sabia que precisava proteger a formiga maior, a rainha do formigueiro, para que este voltasse a ser um lar para muitas outras, e assim o fez.

 

- Cuidando bem das formigas, filho? - disse Atisuanã, revelando-se.

 

- Pajé! Não pude! Elas morreram. Quase todas. O tamanduá...

 

Algumas lágrimas começaram a escorrer misturadas com o soluço. Comovido, Atisuanã se aproxima para consolar o menino.

 

- Tudo um dia morre. Mas a morte não é o fim. As formigas morreram para dar vida ao tamanduá. É assim que age a natureza: Tudo é uma troca. Mas não se preocupe: Num dia se dá, noutro se recebe. O que vai, sempre volta.

 

______________

 

Com o corpo todo adormecido, Naró lembrava dessa história, que o ajudava a renovar as esperanças em momentos difíceis. E esse era o momento mais difícil pelo qual havia passado.

 

Jogaram-no numa espécie de oca escura, sem entrada para o sol, com paredes duras, como se estivesse num buraco debaixo da terra. A única entrada era uma porta, que foi fechada por seus captores, deixando-o na escuridão total. Só, na escuridão. Sua esperança era o único ponto de luz que sobrou.

 

- Psiu... - uma voz denunciava que Naró não estava sozinho.

- Quem é?

- Naró? É você?

- Quem é?

- Naró! É você! Sou eu, Ichua!

- Ichua! Está vivo! Como?

- Fugi. Não queria, mas minha mãe me obrigou. E você?

- Fugi também. Mas não vi ninguém vivo, com excessão do mestre.

- Foi uma loucura! Estavam todos fora de si! Fiquei sabendo que prenderam meu pai,  você e seu mestre na árvore. Toró assumiu a chefia da tribo.

- Não vi seu pai.

- Sim, conseguimos convencer Toró a libertá-lo. Meu pobre pai... estava cançado e louco demais para causar preocupação naqueles que queriam tomar seu lugar.

- Não acho que seu pai estivesse louco! Tem um certo sentido naquelas palavras estranhas que ele gritava. Estava a ponto de me explicar, quando nos capturaram.

- Só você fugiu, Naró? E Atisuanã?

- Estava amarrado no alto, não podia libertá-lo. Temia que caísse de cabeça, caso o soltasse. Parecia inconciente. Não consegui distinguir se o mestre estava só desacordado ou...

 

Um breve silêncio. Ichua entendeu o momento, mas não pôde deixar de avisar seu amigo:

 

- Sinto lhe dizer mas, se não estava morto, agora com certeza não deve mais estar vivo. Eles planejavam sacrificá-los! Toró estava estranho, falava coisas estranhas, sobre entregar você e seu mestre ao espírito do fogo, para acalma-lo.

- Você concordou com ele?

- Nunca! Mas tentei endender a razão de tudo isso. Aceitei o pedido de minha mãe e aqui estou. Fui capturado na floresta e acabei aqui, encontrando o discípulo do homem acusado pelo mal da tribo!

 

Naró entendia agora. Havia esquecido que tudo tem sua razão. Tudo é aprendizado. O que ele precisava aprender? Ichua era mais novo que Naró, mas sua fé nos ensinos do mestre superava a dele.

 

______________

 

Lembrou-se de quando voltou, quando criança, ao formigueiro, dias depois do pequeno desastre. Estava já parcialmente reconstruído. Feliz, foi correndo contar a Atisuanã.

 

- Muito bem! - disse o mestre, zeloso - Cuidar do que ama faz bem, pequeno Naró. É dessa forma que percebemos nossas responsabilidades. Agora que sabe, seja mais vigilante. Todo erro conduz ao acerto. Na vida existem inúmeros caminhos , se não tomarmos o correto, que conduz a destruição do medo, que conduz ao amor, o universo nos colocará na rota situações e pessoas que precisamos para entender o que faltou.

 

Foi assim que Naró desenvolveu sua esperança. Era algo que já estava dentro dele. Agora, naquela prisão, entendia que Ichua foi colocado em seu encontro, quando ele decidiu adiar o retorno à tribo. Entendia mais claramente, em meio àquela escuridão. Não deveria nunca perder essa virtude, que sempre havia lhe guiado. A fé de Ichua, que aceitou a decisão de sua mãe, mesmo não compreendendo no início, o fez encontrá-lo. Os grandes espíritos sabiam o que estavam fazendo. Os homens, sabiam muito pouco. O certo é que não existe desgraça absoluta. A luz se faz nascer após a escuridão, para quem sabe esperar.

 

A porta se abre. A luz entra, mas uma sombra é formada na parede contrária à porta, pelo vulto de um homem que está entre o cativeiro e a liberdade:

 

- O discípulo e o príncipe. Nem mestre, nem rei.

 

Era uma voz conhecida. Após a cegueira momentanea provocada pelo excesso de luz, Naró reconhece a única pessoa que poderia falar sua língua e estar do lado dos inimigos. Toró, o ancião.

 

 

 

 

 

 

(continua, toda quarta-feira, as 11h da manhã)

segunda-feira, novembro 24, 2008

Gratificação

dardos[2]CINTHITA

 

Fico muito agradecido, Cynthia, pelo prêmio recebido. Estou publicando a imagem só agora, mas fiquei realmente gratificado!  Nunca tinha recebido um prêmio de blog antes! rsrs

 

Em breve, divulgarei os blogs premiados por mim.

 

Ao que entendi, funciona assim: Um blogueiro premia o outro, que ganha o direito de premiar um novo blogueiro por seu blog. Só não sei se tem um limite de blogs. É até por isso que demorei tanto pra postar. Mas em breve, vou divulgar os premiados!

 

;-)

quarta-feira, novembro 19, 2008

O Lótus - Capítulo IV

Feiticeiros

 

O sol brilhava forte na tribo tiró. O jovem Atisuanã partira antes dele despontar no céu. Ia atrás das plantas que seu mestre precisava para tratar dos males da tribo.  Yriambé vivia isolado, em sua oca. Não era como seu discípulo, extrovertido e brincalhão. Mas era gentil e humilde. De coração amoroso, cuidava de todos, de qualquer tribo, pela simples alegria de fazer o bem.

 

Atisuanã o admirava muito. Achava importante a serenidade, a seriedade, o equilíbrio entre firmeza e amor, disciplina e sensibilidade. Não sentia afinidade pelos modos mais brutos dos outros membros da tribo. Costumava passar as noites no galho mais alto de uma árvore que havia próximo à oca de sua família. Lá, observava as estrelas. Havia vezes em que  o céu ficava branco, tamanha a quantidade delas. Era particularmente interessado por uma constelação em forma de homem pescando, cuja estrela central tinha um brilho pulsante bem ritmado. Sentia uma saudade imensa quando olhava para ela. Não conseguia distinguir de onde vinha esse sentimento, mas fazia parecer que o lugar onde vivia não era seu verdadeiro lar.

 

Naquele dia, havia ido longe demais. Havia se perdido na floresta. Chegou à mesma encruzilhada que Naró chegaria tempos depois: Entre um ponto ainda mais obscuro da mata, e a descida mais clara rumo à algum provável rio. Mas Atisuanã, mais velho que Naró quando chegaram ao mesmo ponto, já sabia o que estava por vir: Seu primeiro teste para adentrar os segredos dos feiticeiros imortais.

 

Yriambé, com sua serenidade e compaixão, havia adotado Atisuanã desde cedo. Viu nele algo que os olhos físicos apenas não são capazes de enxergar. Não era de falar muito. No entanto, um dos ensinos que chegava à mente do discípulo naquele momento era a necessidade de encarar os medos. Um feiticeiro deve eliminar todo medo, sentimento malígno que sempre existiu no coração do homem. Era clara a necessidade de enfrentar essa escuridão, mergulhar fundo e voltar seguro, transmutado. Urgia, para tanto,  que o discípulo portasse a luz verdadeira. Estaria Atisuanã realmente preparado?

 

Carregava consigo o chá da raiz dos espíritos, mas sabia que não era o momento de usá-lo. Em verdade, reconhecia as forças que degladiavam em seu interior. O mal cria ilusões que soam, falsamente, claras e lógicas. Sendo a raiz uma ferramenta divina, porque não usá-la? Estaria sendo, naquele momento, iludido pelas forças contrárias à luz? Esses são os pensamentos comuns do homem que caminha rumo à sabedoria. Sua única certeza era não ter certeza de nada. E a meditação era um caminho de esclarecimento.

 

Acendeu sua fogueira. Sentou-se, fechou os olhos. Primeiro, calou o corpo, enquanto agradecia mentalmente os seis pontos da matéria: O que morre, o que nasce, o que vê, o que esconde, o que desce e o que sobe. Agradeceu então o sétimo ponto, o do espírito. Esse último era um ponto sem nome, desconhecido, apenas compreendido pelos mais sábios entre todos os sábios. O próximo passo seria calar a mente, tarefa que Atisuanã ainda não dominava totalmente. Sabia que cada um tinha seus defeitos e suas qualidades. Ninguém é melhor que ninguém. Importante conhecer suas próprias virtudes e defeitos e usá-las para eliminá-los. Um curandeiro só pode tratar as enfermidades dos outros quando reconhece as suas. O discípulo tinha em sua posse ferramentas para auxiliá-lo. Algumas delas eram as quatro grandes forças. Para calar a mente, pedia proteção à água, para que nada, além do que já estava, pudesse entrar. Um filtro natural. Retirava então a energia da terra, sua base e sua força, para confrontar-se com o fogo. Este era responsável pela destruição de tudo de nocivo em seu interior. O vento, por fim, levava para longe as cinzas e todo resquício do que já não era necessário. A mente vazia passava a ser, graças à proteção da água, o templo, a porta de entrada apenas da consciência e da luz. Graças à terra, somente as forças nocivas eram queimadas. O fogo trazia a graça da transmutação e o vento ordenava cada coisa em seu devido lugar.

 

Muito tempo se passou. Os sentidos adormeceram, a consciência despertou um pouco mais. Restava apenas a certeza do caminho a percorrer. O discípulo estava preparado. E Atisuanã, em outro estado, levanta-se rumo ao desconhecido, o recanto escuro onde viviam os feiticeiros, portando a luz adquirida não só agora, mas durante diversas existências anteriores. A mata era extremamente fechada. O coração do homem, no entanto, o era também.

 

______________

 

A manhã despontava tímida no vale da floresta. Naró acorda com novas dores na mão esquerda. Precisava cumprir o pedido de Atisuanã, voltar para a tribo a fim de aprender os segredos da raiz dos espíritos. Mas sua fé ainda não havia florescido. Começou logo a descer, a fim de encontrar o rio que o caminho indicava existir, para tratar de sua ferida. A esperança, essa sim,  não o permitia desistir. Mas, com pouca fé, não venceria os obstáculos desconhecidos, nem poderia prever o que estava por vir. E, assim, o tempo passava.

 

Um pouco antes de escurecer, começou a avistar o fundo do vale, com uma densidade maior da mata. Era, com certeza, o rio. Parou para se alimentar. Havia caçado e colhido alguns frutos, mas estas provisões estavam acabando. Resolveu dormir e esperar pela manhã para pescar. Muita coisa aconteceria no astral naquela noite, mas, no dia seguinte, não se lembraria de nada. Era preocupante, pois Naró sabia muito bem ser isso um sinal de adormecimento. Corria o risco de perder os poucos poderes que, a muito custo, havia adquirido como discípulo.

 

Restava o rio. Levantou logo com os primeiros raios de sol e, em pouco tempo, chegou ao fundo do vale. Venceu a mata marginal e, para sua surpresa, alcançou o leito seco de um rio morto. Como isso poderia ser possível, se a mata ao redor estava tão vistosa? O rio poderia secar da noite para o dia? Ao checar, realmente, o discípulo de Atisuanã verificou que o leito sem água estava úmido em alguns pontos, sinal de que ele corria por alí até bem pouco tempo. A curiosidade falava mais alto que a responsabilidade, o que o fez decidir subir rumo à nascente, para descobrir o que havia acontecido.

 

Naró estava semi-consciente, pois sabia o que tinha de fazer. Só não tinha a coragem necessária para determinar seus pensamentos. Outro detalhe agravava a situação: Parecia realmente importante descobrir o que havia acontecido com aquele rio. Duas ações imcompatíveis e importantes entravam em conflito: Voltar logo para a tribo, a fim de preservar o conhecimento ancestral, ou descobrir o que causou o secamento do rio que, inclusive, podia ter ligação com a doença que assolou sua tribo. O que seria mais importante? A falta de coragem desperta a preguiça, e ele achou desnecessário meditar pela resposta mais sábia. Seus pés foram mais rápidos que sua consciência.

 

Seguiu o rumo do leito do rio até pouco mais da metade do dia. A mão doía, a vista começou a embaçar e sinais de febre se evidenciavam, quando Naró avistou sinal de fumaça no horizonte. Estava, com certeza, próximo de alguma tribo. Conforme subia, percebia o chão cada vez mais úmido. Algumas poças de água mostravam que estava próximo do que buscava. Por precaução, subiu uma pequena colina lateral ao leito do rio, para enxergar de longe. Qual sua surpresa, quando vê que ali não era uma tribo qualquer: Havia construções enormes, umas mais altas, outras mais largas, todas belíssimas. Ao longe, um campo todo trabalhado, com plantas da mesma espécie alinhadas lado a lado. Com certeza, não foram colocadas alí pela natureza. Procura pelo rio, mas acaba descrendo em seus próprios olhos: Ele havia sido desviado. Uma barragem gigantesca impedia seu avanço e o direcionava para um lago lateral. Mas porque alguém ia querer desviar um rio inteiro? Então, sente uma picada no ombro esquerdo. Depois nas costas. Então na nuca.

 

- Malditos mosquitos! - Resmunga, pouco antes das pernas bambearem.

 

Todo seu corpo amolece e Naró cai no chão, sem conseguir se mover, embora ainda estivesse acordado. Dois homens estranhos, falando uma língua estranha, se aproximam com o corpo todo pintado de vermelho e azul.  Argolas enormes balançam em suas orelhas e uma pequena madeira  pendia do lábio superior de cada um. Uma espécie de couro protegia seus órgãos genitais e pés, presos com cipós que ele nunca havia visto. Tanta surpresa não se expressou seu rosto agora adormecido, e o aprendiz de feiticeiro foi levado na direção daquela enorme tribo, onde não poderia imaginar o que ainda estava por lhe acontecer.

 

 

 

 

 

 

(continua, toda quarta-feira, as 11h da manhã)

quarta-feira, novembro 12, 2008

O Lótus - Capítulo III

A Raiz dos Espíritos

 

- Mestre! - sussurrou Naró.

 

Após acordar, se viu amarrado pelos pulsos ao lado de Atisuanã que, por sua vez, também estava, só que pelo tornozelo esquerdo. Não havia sinal de Quityambó. Apenas um jovem fazia a guarda dos dois, mas estava dormindo encostado na mesma árvore que os suspendia.

 

- Mestre! Está acordado?

 

O velho curandeiro continuava inconsciente. Naró suspirou e olhou para o céu. Estava escuro, apesar de ainda ser cedo. Nuvens negras ocultavam o sol.

 

Lembrou-se de uma cena semelhante, acontecida pouco antes do primeiro caso de morte silenciosa. Havia saído para a floresta, atrás de um agrado para o mestre. Como sabia que ele gostava de chás amargos, aproveitou para procurar algumas folhas com essas características. Juntou três tipos e mascou-as para experimentar o sabor, mas engasgou e acabou por cuspí-las. Se havia algo que Naró não entendia no Mestre, era esse gosto estranho.

 

Acendeu uma fogueira e passou a cozinhar as folhas com pedras retiradas do fogo. Colocava-as dentro da cuia com água,  onde elas estavam. De repente, uma sombra pairou no céu. Eram as nuvens, rapidamente roubando toda luz ao redor. Não chegou a chover, apenas ventou muito. Uma cena rara.

 

À noite, trouxe o chá para o Mestre, que experimentou satisfeito.

 

- Minha gratidão, filho. Fez uma boa escolha. A folha de socó faz bom matrimônio entre as outras duas.

- Matrimônio?

- Sim. Dois opostos não permanecem juntos. É preciso um terceiro elemento.  A criação parte do três. Dois opostos e um neutro. É assim, sempre foi. Há grande riqueza nesse ensino. - Disse, com seu sorriso tipicamente sereno.

 

O discipulado de Naró era empírico. A ciência interior. Atisuanã guiava sem que, muitas vezes, o aluno soubesse. O ensinou que toda a natureza exibia a verdade absoluta de todas as coisas. Bastava silenciar, enxergar e ouvir para entender. Tudo estava em todas as partes. No grande residia o pequeno. No pequeno, alí encontraria o grande. Um grão de areia concentrava todo o conhecimento do universo.

 

E, nesse empirismo, buscava sintetizar a idéia do céu novamente obscurecido, pendurado ao lado do mestre. Alguma nova lição havia de ser aprendida.  Depois de muito esforço, acabou adormecendo.

 

______________

 

Os raios de sol do novo dia atingem o rosto de Naró, fazendo-o despertar de seu sono tranquilo no chão da floresta. Como pode ter dormido tanto, a ponto de só acordar depois do sol? Tentou se levantar. Uma dormência nas pernas o fez cair de lado.

 

- Que olor é esse? - Pensou.

 

Era um perfume familiar. Levou alguns instantes para se lembrar da flor de Lótus guardada em seu Jamanxim. Rapidamente, arrancou-a de dentro e lançou-a à distância.

 

- Porque é que as plantas de cura sempre me pregam essas brincadeiras?

 

Lembrou-se da folha amarga desconhecida usada erroneamente na ferida da mão esquerda. Por sinal, já não estava tão inchada como no dia anterior. Uma leve dor de cabeça na parte frontal da testa, acima dos olhos, incomova um pouco. Estava difícil se erguer.

 

- Coragem! - clamou para si mesmo.

 

Sentiu uma onda de energia percorrer-lhe a espinha. Ficou de pé em dois tempos. Decidido a buscar orientação superior, começou a preparar o ritual do chá da raiz dos espíritos. Para isso era necessário acender uma fogueira, o que fez com facilidade.

 

Fechou os olhos, com as pernas cruzadas, a garrafa de chá entre elas e iniciou o canto para chamar os espíritos protetores da mata.  Bebeu então parte do líquido sagrado e procurou manter sua atenção no crepitar do fogo. Olhos fechados, atenção firme, determinação também. Para se encontrar com os grandes seres, necessitava se manter sério e flexível. Precisava ser forte e terno.

 

Pouco depois de sentir um formigamento pelo corpo todo, viu-se fora dele. Como já estava acostumado a fazer quando viajando no plano astral, dirige-se ao fogo para eliminar qualquer impureza agregada e agradecer a Tupã.

 

- Filho...

 

A voz de Atisuanã era reconfortante. Normalmente, andava com um cajado para apoiar na caminhada que a idade já tornara difícil. No entanto, estava bem ereto e saudável, sem nenhum suporte além das próprias pernas. Mas seu sorriso afável havia dado lugar a um semblante um pouco mais rígido.

 

- Grande Mestre! O Lótus! Eu o encontrei, é magnífico! Mas seus efeitos não foram como esperado... O que fiz de errado?

- O Lótus principal já foi encontrado, meu filho. A importância das coisas não reside nas coisas, e sim na infinita combinação de vontades. A borboleta não é nada sem a flor, mas a borboleta não é a flor.

- Mestre! O que preciso aprender?

- Volte para a tribo. Não devia tê-la deixado. É preciso receber os segredos da raiz dos espíritos.

- Mas quem irá me ensinar?

- A grande mãe será sua orientação. Olhe à sua volta. Ela o envolve em seu abraço. Vou ensiná-lo a curar, mas ainda há lacunas em seu aprendizado. Graças a Tupã, temos a raiz dos espíritos. Sem ela, todo a ancestralidade estaria perdida. Use o que ainda tem com sabedoria. Mantenha a esperança. A cada novo encontro, ensinarei uma palavra de poder, para ser usada nas horas de necessidade. A primeira, você já usou hoje. A cada novo uso, uma virtude crescerá mais forte em você.

- Que palavra é essa, mestre? Não me recordo.

- Elimine a ansiedade e lembrará. Mas essa é outra lição. Por agora, apenas ouça a grande mãe que cuida de ti. Ela é a manifestação do amor de Tupã.

 

O mestre desaparece no ar. Naró entendia a necessidade de voltar. Precisava aprender a fazer o chá, mas apenas Atisuanã poderia lhe ensinar. Com o tempo, aprenderia a se consultar sem a necessidade da raiz dos espíritos, mas esse tempo ainda não havia chegado. Era preciso poupar o líquido da garrafa para esse momento, e não havia margem para erro. Começou a sentir a necessidade de voltar ao corpo. Então, um brilho, pela terceira vez, o chama a atenção na mata. A mesma bela mulher, agachada, regava algumas pequenas flores com suas lágrimas e as acariciava com seus cabelos. Cantava-lhes uma doce canção, enquanto elas pareciam procurar por sua voz reconfortante. A presença de um amor ancestral era evidente e um único refrão, sem pressa, era repetido:

 

" E a terra era criancinha ainda

Quando eu comecei a te amar"

 

Ainda cantando, levantou a cabeça e olhou na direção de Naró. Seu sorriso parecia mais intenso agora, como o de uma mãe feliz por ver seu filho descobrindo o mundo. Reparou mais uma vez nas flores e uma delas lhe chamou a atenção. Pequenina, quatro pétalas e miolo dourado. Sim, Naró compreendia agora. Ele havia sido aquela flor.

 

______________

 

A noite já ameaçava obscurecer a terra. A lua estava iniciando sua forma invisível, quando não iluminava mais o céu, restando apenas as estrelas para mostrar os caminhos. Os poucos raios de sol ainda permitiram que Naró fizesse mais um esforço para se soltar da árvore-cativeiro. Sua preocupação era com o balançar do galho. Temia que o mestre caísse com a cabeça no chão.  Depois de cuidadoso esforço, o discípulo de Atisuanã consegue se libertar, caindo de uma altura duas vezes a de seu tamanho. Sentiu uma dor aguda na mão esquerda, e reparou que um corte profundo havia sido feito pelo cipó que o aprisionara.

 

Olhou para o Mestre. Não conseguiu perceber se ele respirava. Além disso, estava muito alto para arriscar derrubá-lo de cabeça no chão. Olhou para o rapaz que montava guarda. Ainda dormia. Decidiu então fugir. Precisava de tempo para refletir sobre tudo o que acontecera.  Correu na direção da mata e, conforme seguiu, começou a ouvir um barulho curioso, que só se fazia aumentar. Após contornar uma grande pedra, parou horrorizado com a visão que teve: Corpos amontoados, urubus, moscas, uma cena degradante. Sem conseguir tirar os olhos, apesar do nojo que sentia, Naró foge, de costas e encarando aquela cena horrível, em direção à mata. Poucos passos depois, tropeça num cesto qu estava no chão. Vira-se, assustado, e corre, desaparecendo no interior misterioso da floresta sem fim.

 

 

 

(continua, toda quarta-feira, as 11h da manhã)

quarta-feira, novembro 05, 2008

O Lótus - Capítulo II

A busca

 

O pânico havia se instalado entre os tirós. Vários membros, principalmente os anciões, faziam campanha frente à oca de Quityambó. Esses últimos, berrando e batendo as palmas das mãos nas coxas diversas vezes. Atisuanã, sempre calmo, jazia de pé frente à entrada da oca, de olhos fechados e expressão séria. Ao seu lado Naró, desesperado, pedia calma a todos. Estavam mesmo a ponto de invadir o lar do chefe. A grande maioria, com excessão de alguns anciões, nutria grande respeito e admiração por Atisuanã. Era apenas isso que mantinha a estabilidade nessa tarde de caos. Tudo porque muitos haviam morrido, a apenas uma lua do adoecimento do cacique.

 

- Grande Atisuanã - berrou uma das mulheres - meu filho se foi. Como pode chefe Quityambó não nos dar ouvidos?

-  Aí, aí, aí! - Berrou Toró, um dos anciões - O sol negro há de vir novamente! Lembre-se disso, Atisuanã, o sol Negro virá e levará sua alma para Airelan! Não se perca novamente!

 

"Novamente?", pensou Naró. O que ele poderia querer dizer com isso? Nesse momento, Atisuanã abre os olhos. Sem fazer nenhum outro movimento além de um leve sorriso, diz:

 

- Se Airelan for meu destino, que assim seja!

 

Silêncio. Todos ficaram assustados com o que o curandeiro disse. Segundo as crenças dos tirós, Airelan é a terra do deus do mal onde os sábios desonrados são condenados a sofrer duras penas até o reinício dos tempos.

 

- Está louco! - gritou outro ancião, ameaçando investir contra o curandeiro - É ele! Atisuanã é quem trouxe a morte silenciosa! Enlouqueceu! Ele...

 

A cerca de dois passos de alcançá-lo, pára no lugar, arregala os olhos e mantém-se em silêncio. Um ritual um tanto comum naqueles dias. Um ritual de morte. Todos sabiam o que aconteceria a seguir, momentos antes do ancião cair no chão.

 

- Morte silenciosa! Morte silenciosa!! - Gritavam todos.

 

______________

 

Naró desperta sobresaltado. Está no meio da floresta escura, sem saber se é dia ou noite nem o motivo de estar ali e, por momentos, nem mesmo seu próprio nome. O desespero faz seu coração disparar. Alguns vislumbres de um sonho que teve. Tentando se acalmar, senta-se apoiado em uma grande raiz. Aos poucos vêm à memória imagens do sonho. Uma linda mulher, pele bronzeada, olhos negros profundos e um sorriso sereno como há muito tempo não via, desde que a morte silenciosa ameaçou seu povo.

 

- Porque chamei aquela mulher de mãe?

 

Faz mais um esforço de memória, em vão. Uma agulhada na mão esquerda o lembra do erro do dia anterior. Estava enorme, inchada. Tinha que chegar no riacho logo para lavá-la e tratá-la. Dessa vez, procuraria a planta certa, não arriscaria mais com folhas desconhecidas.

 

Dois caminhos à frente. O primeiro, descendo para um vale onde, provavelmente haveria um rio. O segundo, um pouco mais plano, mas numa direção completamente desconhecida, para o interior cada vez mais obscuro da mata. Visto à distância, mais parecia uma caverna. Pensou um pouco e resolveu descer o rio. Iria precisar de água, afinal. Além disso, não estava muito disposto a enfrentar as criaturas ocultas pela eterna ausência do sol.

 

Começou a descer o vale com cuidado. A luz começava a aparecer, provando que realmente era dia e que a região mais densa das árvores e cipós mais antigos já havia ficado para trás. Nenhum som ou sinal de água, no entanto. Apenas alguns gritinho de macacos curiosos e outros cantos menores ecoavam pela vastidão. O sol já havia começado seu movimento de retirada quando Naró decidiu parar para descansar. Um pequeno brilho piscante ao sabor do vento nas folhas, chamou sua atenção, à certa distância. Pensou em se levantar para ver.

 

- Será que estou sonhando de novo?

 

Talvez fosse um sinal. Talvez o sonho fosse um aviso. Afinal, as semelhanças eram imensas. Ávido, ergueu-se e mal pode conter o contentamento ao encarar o violeta das incontáveis pétalas de cada uma daquelas flores na árvore à sua frente.

 

- Uma árvore de Lótus!

 

Naró não duvidava mais de que era um sinal. As árvores de Lótus haviam desaparecido muito antes que ele nascesse, vivendo apenas nas histórias e lendas de seu povo. A essência de sua flor tinha, segundo essas lendas, faculdades curativas impressionantes. Rapidamente, Naró apanha uma das flores cujos tons degradê de violeta a vermelho prendiam sua atenção, fascinando também pela enorme quantidade de pétalas. Ao contá-las, desiste depois de se perder quatro vezes próximo do número cento e oito. Sente o perfume, inebriante. Precisaria ainda de uma cuia para macetar a flor, mas não via nada que pudesse servir por perto. Resolve guardá-la dentro de seu Jamanxim, uma espécie de mochila feita de cipós, até encontrar o equipamento adequado.

 

- Será esse o resultado de minha busca? Será o Lótus a cura para a morte silenciosa?

 

______________

 

Naró não sabia mais o que fazer. Realmente, Atisuanã havia cometido, aparentemente, muitos pequenos erros. Ou estava louco, ou possuido. Naquele momento, parecia não se importar com o tumulto que ele mesmo acabou gerando. As pessoas, não compreendendo a passividade do curandeiro, acabavam por se limitar a gritar e lastimar a morte do ancião a alguns passos de distância. Alguns puxaram, temerosos, o corpo sem vida para longe do feiticeiro. Em verdade, o temor quanto aos poderes do Pajé já superava a admiração. Frente ao caos, Naró estava indeciso entre ajudar a carregar o corpo, ou se esquivar das mulheres gritando, ou ainda em entender o que se passava com o mestre. Acaba por tropeçar para o interior da oca. Lá dentro, Quityambó estava sentando, com as costas curvadas e a cabeça apoiada no chão, repetindo aquelas mesmas palavras, dessa vez num tom mais grave e fraco:

 

- Siriam, narena rudia ka lestrina.

 

Era o único que o cacique não espulsava da oca. Por isso, também era responsável por cuidar do lider dos Tirós.

 

- Grande Quityambó! - Questiona Naró, em derradeira esperança de obter resposta - O que posso fazer para ajudar? Será este nosso fim?

 

O cacique se cala. Ergue a cabeça e encara Naró. Olha para o alto, apontando com o dedo indicador, como quem mostra uma estrela distante. Começa então a desenhar um círculo no ar. Pára. Recolhe o braço ainda olhando para cima e, num suspiro, volta a encarar Naró, com um leve sorriso no canto da boca:

 

- Siriam.

 

Naró havia entendido. Dentro dele, a resposta saltava como uma nascente do leito da montanha de pedra. Siriam soava como lar. Um sentimento de nostalgia indescritível e saudade antiga fez com que o discípulo de Atisuanã ficasse ainda mais confuso, pasmo e reflexivo, apesar dos gritos que não cessavam, vindos de fora.

 

Então, Toró entra abruptamente:

 

- Lá está seu discípulo! Não podemos nos arriscar. Ele pode estar enfeitiçado ou louco também!

 

Naró se levanta, tenta fugir, mas é dominado por muitos homens, amarrado e amordaçado. Apenas seus olhos estão livres para ver Quityambó lutando contra vários deles, em vão,  para permanecer no interior da oca.

 

Rapidamente ambos são arrastados para o exterior, na direção de uma árvore onde Atisuanã está pendurado pelo tornozelo esquerdo, de cabeça para baixo. A vista embaça, o mundo gira e balança com o ímpeto de seus carregadores. Um som oco e um gosto de sangue são as últimas sensações de Naró antes de perder os sentidos.

 

 

 

(continua, toda quarta-feira, as 11h da manhã)