O Lótus - Capítulo V
Esperança e Fé
Muitas pessoas paravam para ver o prisioneiro ser carregado. Naró nunca havia visto tanta gente junta, nem tanta curiosidade. Apesar de estar suspenso pelos dois homens que o capturaram, dava pra sentir que o chão da tribo era duro, talvez feito de pedra. Não via muito, já que seus carregadores o suspenderam acima de suas cabeças, barriga para cima. O céu estranhamente cinza, sem luz, parecia obscurecer também suas esperanças.
Quando criança, gostava de olhar as formigas. Caminhavam juntas, todos os dias, certas de encontrar as folhas e insetos que precisavam. Cada dia de trabalho era certeza de recompensa. Eram sempre unidas e o formigueiro sempre abastecido. Certa vez, numa manhã de primavera, o sol brilhava convidativo a um passeio e Naró passou para ver suas queridas amigas. Atisuanã já observava o menino, pois via nele um possível discípulo. Sua intuição o dizia para seguí-lo. Mas, quando Naró chegou no lugar do formigueiro, um buraco estava em seu lugar, sem nenhuma delas por perto. Uma cena chocante para um menino tão novo. No entanto, Naró não era um menino qualquer. Sempre curioso, não se deixava abater e começou a observar os sinais: Pegadas de algum animal enorme, do tamanho de um homem, e com garras. Seguiu-as, até escutar um barulho. Abriu caminho no mato baixo até encontrar a razão do sumiço: Um enorme tamanduá, que fugiu assim que o viu. Naró ficou estático. Sabia, agora, que não veria mais suas companheiras. Quis chorar, mas segurou as lágrimas quando lhe veio a idéia de que algumas delas ainda poderiam estar vivas. Voltou ao formigueiro e cavou mais. Nada. Insistiu um pouco mais, sem sucesso. Olhou ao redor e viu um pedaço de casca de palmeira. Correu para apanha-la, a fim de cavar com mais facilidade. Sua persistencia rendeu frutos quando encontrou a rainha, alguns ovos e várias operárias, perdidas. Como animais domesticados que reconhecem seu dono, as formigas pareciam ter recuperado a esperança, começaram a se reagrupar. Naró sabia que precisava proteger a formiga maior, a rainha do formigueiro, para que este voltasse a ser um lar para muitas outras, e assim o fez.
- Cuidando bem das formigas, filho? - disse Atisuanã, revelando-se.
- Pajé! Não pude! Elas morreram. Quase todas. O tamanduá...
Algumas lágrimas começaram a escorrer misturadas com o soluço. Comovido, Atisuanã se aproxima para consolar o menino.
- Tudo um dia morre. Mas a morte não é o fim. As formigas morreram para dar vida ao tamanduá. É assim que age a natureza: Tudo é uma troca. Mas não se preocupe: Num dia se dá, noutro se recebe. O que vai, sempre volta.
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Com o corpo todo adormecido, Naró lembrava dessa história, que o ajudava a renovar as esperanças em momentos difíceis. E esse era o momento mais difícil pelo qual havia passado.
Jogaram-no numa espécie de oca escura, sem entrada para o sol, com paredes duras, como se estivesse num buraco debaixo da terra. A única entrada era uma porta, que foi fechada por seus captores, deixando-o na escuridão total. Só, na escuridão. Sua esperança era o único ponto de luz que sobrou.
- Psiu... - uma voz denunciava que Naró não estava sozinho.
- Quem é?
- Naró? É você?
- Quem é?
- Naró! É você! Sou eu, Ichua!
- Ichua! Está vivo! Como?
- Fugi. Não queria, mas minha mãe me obrigou. E você?
- Fugi também. Mas não vi ninguém vivo, com excessão do mestre.
- Foi uma loucura! Estavam todos fora de si! Fiquei sabendo que prenderam meu pai, você e seu mestre na árvore. Toró assumiu a chefia da tribo.
- Não vi seu pai.
- Sim, conseguimos convencer Toró a libertá-lo. Meu pobre pai... estava cançado e louco demais para causar preocupação naqueles que queriam tomar seu lugar.
- Não acho que seu pai estivesse louco! Tem um certo sentido naquelas palavras estranhas que ele gritava. Estava a ponto de me explicar, quando nos capturaram.
- Só você fugiu, Naró? E Atisuanã?
- Estava amarrado no alto, não podia libertá-lo. Temia que caísse de cabeça, caso o soltasse. Parecia inconciente. Não consegui distinguir se o mestre estava só desacordado ou...
Um breve silêncio. Ichua entendeu o momento, mas não pôde deixar de avisar seu amigo:
- Sinto lhe dizer mas, se não estava morto, agora com certeza não deve mais estar vivo. Eles planejavam sacrificá-los! Toró estava estranho, falava coisas estranhas, sobre entregar você e seu mestre ao espírito do fogo, para acalma-lo.
- Você concordou com ele?
- Nunca! Mas tentei endender a razão de tudo isso. Aceitei o pedido de minha mãe e aqui estou. Fui capturado na floresta e acabei aqui, encontrando o discípulo do homem acusado pelo mal da tribo!
Naró entendia agora. Havia esquecido que tudo tem sua razão. Tudo é aprendizado. O que ele precisava aprender? Ichua era mais novo que Naró, mas sua fé nos ensinos do mestre superava a dele.
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Lembrou-se de quando voltou, quando criança, ao formigueiro, dias depois do pequeno desastre. Estava já parcialmente reconstruído. Feliz, foi correndo contar a Atisuanã.
- Muito bem! - disse o mestre, zeloso - Cuidar do que ama faz bem, pequeno Naró. É dessa forma que percebemos nossas responsabilidades. Agora que sabe, seja mais vigilante. Todo erro conduz ao acerto. Na vida existem inúmeros caminhos , se não tomarmos o correto, que conduz a destruição do medo, que conduz ao amor, o universo nos colocará na rota situações e pessoas que precisamos para entender o que faltou.
Foi assim que Naró desenvolveu sua esperança. Era algo que já estava dentro dele. Agora, naquela prisão, entendia que Ichua foi colocado em seu encontro, quando ele decidiu adiar o retorno à tribo. Entendia mais claramente, em meio àquela escuridão. Não deveria nunca perder essa virtude, que sempre havia lhe guiado. A fé de Ichua, que aceitou a decisão de sua mãe, mesmo não compreendendo no início, o fez encontrá-lo. Os grandes espíritos sabiam o que estavam fazendo. Os homens, sabiam muito pouco. O certo é que não existe desgraça absoluta. A luz se faz nascer após a escuridão, para quem sabe esperar.
A porta se abre. A luz entra, mas uma sombra é formada na parede contrária à porta, pelo vulto de um homem que está entre o cativeiro e a liberdade:
- O discípulo e o príncipe. Nem mestre, nem rei.
Era uma voz conhecida. Após a cegueira momentanea provocada pelo excesso de luz, Naró reconhece a única pessoa que poderia falar sua língua e estar do lado dos inimigos. Toró, o ancião.
(continua, toda quarta-feira, as 11h da manhã)