O que está em cima é o que está em baixo
Pela primeira vez, Naró aceita o cativeiro. Entra em sua cela de maneira serena, como raramente o fazia. O guarda, do lado de fora, apenas o observa. Ichua dorme num canto.
O barulho pesado da porta ecoou durante um longo instante após ser fechada. O sono do filho de Quityambó parecia pesado. A escuridão, mais uma vez, era companheira do jovem feiticeiro. Resolve sentar-se em outro canto para meditar. Não havia outra saída. Compreendia que a natureza o colocou nessa situação, já que ele não havia tomado essa atitude quando descobriu o rio seco, optando pela decisão de não voltar à tribo. Agora estava preso e o tempo corria solto lá fora. Ao invés de ser dominado pela ansiedade, preferiu confiar na sabedoria divina. Só lhe restava a meditação. Entendia ser inútil enfrentar o que estava fora de seu controle, e que isso ocorria para seu próprio aprendizado.
Cruzou as pernas, fechou os olhos. Ficou assim durante algumas horas. Sempre teve facilidade em silenciar a mente, mais até do que seu mestre, Atisuanã.
- Um discípulo é um mestre, e um mestre é um discípulo. - Costumava dizer Atisuanã para Naró.
Não é a toa que ele era seu único aprendiz. E, mesmo isso, não os diferenciava do restante da tribo. Sabiam que eram diferentes, que vinham de um mesmo lugar antes de nascerem, mas não eram superiores nem inferiores a ninguém. Era importante que fosse assim. Era o equíbrio perene entre todas as coisas.
Começou a escutar vozes. Uma multidão. Eram graves e caóticas. De olhos fechados, franzia o cenho sem perceber, tentando decifrar o que diziam. Repentinamente, elas pararam. Uma brisa fria batia em seu tornozelo e sumia, ritimadamente. Como uma respiração. Imaginou que Ichua estivesse dormindo com o rosto perto de sua perna.
- Ichua!
Não obteve resposta.
- Ichua! Acorde.
Nada, novamente. Avança com o braço e, para sua surpresa, além de não encontrar o filho mais novo do cacique, reparou que o chão havia mudado. Ande de pedra, agora havia grama. Em meio àquele umbral, decidiu continuar apalpando a grama, rastejando. Percebeu que não estava no mesmo lugar de antes.
- Heeeeiiiii...... - bradou.
Em resposta, sua voz em eco, que respondia em seguida e em seguida de novo, assim, infinitamente. Um ouvido apurado poderia continuar acompanhando esse ciclo por toda a eternidade.
Sentiu a brisa novamente, dessa vez em seu ombro direito. Imaginou que alguém estivesse brincando, mas se esforçou para não perder a serenidade.
- É - Ouviu Naró, num sussurro, vindo de trás. Era uma voz feminina.
Vira-se e não vê ninguém.
- Mestre! - Clama.
- Seu mestre não está aqui. - Disse outra voz, grave, sussurando pausadamente.
- Quem é você?
- Eu sou você. Você sempre me chamou de "eu".
Um sono estranho parecia dominar o discípulo. Não conseguia mais manter as costas eretas. Se lembrou de Quityambó, na oca, sentado com a cabeça encostada no chão. Sentiu vontade de imitar esse movimento do chefe.
- Como estou cançado! - Disse a voz.
- Como estou cançado! - Repetiu Naró.
Sentiu uma tontura e um leve esquecimento de onde estava. Uma angústia, sensação de estar realmente aprisionado. Num último esforço, procura por alguma réstia de luz. Nada. A escuridão era absoluta.
- Não existe luz. A luz é uma ilusão. - Diz a voz grave.
- A luz é uma ilusão. - Repete Naró.
Sente uma preguiça imensa. Necessidade de descansar.
- Descanse. O mundo é pesado demais! Você não precisa carregá-lo. Deite-se.
Naró se deita. Sentia prazer naquele descanço. Queria só poder permanecer assim, por todo o sempre. Uma sensação de tranquilidade permeada por uma angústia indefinível, crescente. O ócio aumentava a angústia. A consciência já adquirida do discípulo de Atisuanã não permitia que as coisas permanecessem assim. Algum foco de luz deveria existir, ainda que escondido, ainda que em pequena quantidade. Esse foco de luz interfiria em seu repouso. Mesmo asssim, dormiu.
Sonhou que estava num pântano, afundado até a cintura, carregando um objeto estranho nas costas. Era enorme, maior que uma oca. Aos poucos ia afundando mais, até o queixo. Cuspia a lama que teimava em entrar pela boca, até se deixar levar pelo peso do objeto estranho que carregava, e adormecer mais uma vez, soterrado pelo lodo.
Sonhou que flutuava levemente. Estava sobre as nuvens e via a enorme tribo quélti do alto. Via a represa firme, sólida, bloqueando o rio e formando um enorme lago atrás de si. O rio estava aprisionado. Nenhum esforço dos espíritos das águas poderia vencer obra tão engenhosa. Resolve descer, para ver mais de perto.
Toca a represa, toda feita de pesadas pedras e troncos de árvores antigas. Um poder realmente ancestral, usado para limitar outro poder antigo: A força das águas. Mas havia algo pequeno, imperceptível enquanto estava lá no alto. Uma minúscula rachadura deixava escorrer uma gota d'água por vez. Isso o atormentava, de forma terrivelmente familiar. Sua mente confusa procurou a resposta. O que é que ele estava fazendo mesmo alí? Num esforço de determinação, conseguiu se lembrar que estava sonhando. Estava no pântano, carregando um objeto enorme. Sim, essa deveria ser a realidade.
- Por que é que eu estava no pantano mesmo?
Não se lembrava. Estava soterrado de sonhos e inverdades.
- É - Ouviu novamente a voz feminina.
- O que "é"? - perguntou Naró.
- É o que é.
Pensou em utilizar a palavra mágica. Mas seu sono era tão profundo que não conseguia se lembrar nem como era sua pronúncia. Apenas uma palavra ainda permanecia vibrante em sua memória.
- Verdade! O que é verdade e o que é sonho?
- Descanse, Naró - voltou a se pronunciar a voz grave.
-Não! O que estou fazendo aqui! Quem sou eu mesmo?
- Descanse!
- Verdade! Preciso da verdade!
Repentinamente, desperta do sono e se vê, de novo, mergulhado na lama, carregando o enorme peso.
- Coragem! - brada, lembrando-se da palavra mágica.
Suas forças renovam, seu sangue passa a circular. O enorme objeto se torna leve e Naró o ergue. Mais que isso, ele consegue caminhar sobre as águas lamacentas daquele brejo. Solta o enorme peso e vê que era uma grande canoa, como jamais havia visto. Tão grande que a tribo inteira caberia nela. Através de um cipó grosso que desce daquela coisa, o aprendiz escala até o topo. Havia muitas pessoas, todas se divertiam com jogos pouco familiares a ele. Poucos pareciam trabalhar. Usavam tecidos maravilhosos no corpo, com cores das mais diversas e texturas das mais perfeitas, repletos de enfeites. Era noite, mas não havia muitas estrelas no céu.
- Ainda não era aqui que eu estava! Tenho certeza de algo antes disso.
Mais uma vez, desperta e se vê com a cabeça tocando o solo, como o cacique o fazia, em sua loucura.
- Como era mesmo a frase do cacique?
Depois de algum esforço da memória, lembra-se da primeira palavra.
- Siriam! - grita Naró.
______________
- Naró! Acorde!
Finalmente desperta do que julga ser o último despertar.
- Ichua!
- Estava sonhando?
- Sim - diz, aliviado.
- Que susto me deu! Pensei que estivesse louco. Como...
- Como seu pai?
- Sim.
- Ichua! Precisamos voltar para a tribo! Não há mais tempo a perder. Preciso encontrar o mestre, aprender o segredo da raiz dos espíritos. E precisamos salvar seu pai.
- Aquela palavra. Siriam. É nossa casa? Sei que é nossa casa, sinto isso!
- Você também? Sim! Não compreendo o restante, mas Siriam é nosso lar. Acho que existe algo além do que vivemos, como se estivessemos dormindo e sonhando agora. Mas, como estamos sonhando há muito tempo, será difícil despertar.
- Difícil ou não, temos que fazê-lo.
- Sim. Não pode existir outro propósito. A verdade é a única coisa que nos mantém conscientes.
- Naró. Como vamos sair?
- Na hora certa. A natureza vai nos libertar quando julgar que compreendemos o que precisava ser compreendido. Não há muito o que fazer agora.
De repente, alguém força a porta, que se abre. É a mulher encapuzada. Faz um sinal para que eles a sigam.
Naró, serenamente, se levanta. Ichua vacila e olha com espanto para o aprendiz de pajé. O filho do cacique começa a perceber que há algo nele maior do que conseguia perceber. Sua fé havia aumentado. Talvez ainda houvesse esperança para todos.
- Você não vem? - pergunta Naró.
Ichua se levanta. Não havia mesmo tempo a perder, mas preferia não pensar no cenário que encontrariam quando chegassem em casa. Preferiu imaginar apenas uma forma de escapar daquela tribo enorme, cheia de guardas e outras pessoas circulando, repleta de construções e muros. Isso, sozinho, já seria um enorme desafio.
continua quarta-feira, 11h da manhã (GMT-3:00 Brasília/Brasil)