Em busca do mestre
Era noite. O mundo parecia girar, enquanto o vento provocava calafrios em Atisuanã. Percebeu que estava de ponta cabeça, sozinho, preso pelo pé esquerdo e com as mãos atadas às costas. Não havia muito o que fazer. Espera apenas algum sinal, que indicasse de que forma aqueles acontecimentos culminariam em cura para todos. Inclusive para ele.
Luz à distância. Parecem ser duas tochas. Duas pessoas. Pacientemente o curandeiro espera. Quando se aproximam, vê que se trata de Toró e um jovem.
- Aqui está, senhor! O outro fugiu. Ameaçou me estrangular se eu o tentasse impedir.
- Vou lhe dar uma chance. - disse Toró. Não é preciso morrer.
Atisuanã não responde. Apenas aguarda que o ancião continue.
- Você... Você não tem idéia do mal que trouxe a todos nós!
Atisuanã continua impassível.
- Sempre com seu falso silêncio! Se apegou tanto aos espíritos que se esqueceu da carne. Se esqueceu dos homens. Isso é loucura! Está cego. E sua doença levou todos à morte!
Atisuanã não muda sua postura.
- Onde está seu discípulo? O que estão tramando?
- É o que eu gostaria de saber - diz o mestre, quebrando o silêncio.
- Ah! Resolveu falar?
- Não sei onde Naró se encontra.
- Eu lhe aviso! Eu...
- Os acontecimentos que estão por vir foram planejados há muito tempo. E todos nós que estamos aqui aceitamos passar por isso. Nossas atitudes perante esses fatos é que farão a diferença.
- Ha, ha, ha... Você não sabe de nada. Não tem idéia do que foi realmente planejado.
- Às vezes nossos planos não são mais do que lembranças de algo decidido muito antes.
Toró não responde. Olha por um instante para o velho curandeiro, até franzir o cenho e chamar seu jovem assistente.
- Apodreça então com as lembranças que lhe agradam. Vamos embora.
Saem os dois, de volta de ondem haviam saído.
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Por um breve momento, os olhares de Naró e Haline se cruzam. Mesmo assim, parece ter passado uma eternidade. O suficiente para eles compreenderem tudo, um a respeito do outro. Todo temor passa, toda dúvida cessa. Sem necessitar de nenhum novo gesto, eles seguem para a saída do palácio. Ichua atrás deles.
- Quem é ela? Você a conhece, Naró?
- Talvez.
Mais à frente, dois guardas estão dormindo. Eles passam facilmente por eles.
Ao se aproximarem da porta principal, tudo começa a parecer fácil demais. Haline segura o ombro de Naró, fazendo sinal para que esperem. Fechando os olhos, começa a balbuciar palavras estranhas para os dois, de forma mantralizada. É assim que faz para deixar o corpo e viajar em astral. Lá fora vê os soldados à espreita, os aguardando. Além dos soldados, alguns monstros. Criaturas hediondas, de tamanhos os mais variádos. Uns com peles escamosas, outros com pêlos assimétricos envolvendo o corpo todo, curvados, rosnando, ganindo, babando. Nunca havia visto cena tão pavorosa. No meio disso tudo, algo lhe chamou a atenção, um homem alto, de armadura negra e respiração pesada. Assustada, resolve voltar para o corpo. Tão logo o faz, acena a Naró e Ichua para tentarem achar outra saída.
O palácio era realmente enorme. Havia muitas salas ainda desconhecidas por ela. Estranhamente, lá dentro parecia também não ter guardas. Chegam, então, a um portal de madeira ricamente entalhado, que não poderia deixar de chamar a atenção. Entre as imagens, histórias inteiras pareciam ser descritas alí. Uma delas lhe chamou a atenção: Uma sacerdotiza quélti portando dois frascos, os erguia acima da cabeça.
Ichua faz um esforço para abrir uma das pesadas portas duplas do portal. Um enorme barulho ecoa pelos corredores, mas não parecia haver ninguém para capturá-los. Cada um deles pega duas tochas dos corredores e entram na sala escura. Era imensa, cilíndrica, formada por andares para baixo e para cima, circundada por uma escadaria em espiral. Não dava para ver nem o fundo, nem o topo.
- Se descermos, poderemos ficar presos - diz Ichua.
- Se subirmos, também! - responde Naró.
A atenção de Haline é desviada para as paredes do salão: Livros. Muitos deles. Ela avisa os dois a respeito. Estavam todos em forma de papíros enrolados. Ela abre um deles e lê um trecho:
" Só com minhas roupas brancas fui capaz de compreender os segredos que me confundiam. Vi que a confusão era minha. Vi que há mais semelhanças do que diferenças. E, quando vi tudo isso, a escuridão se dissipou."
Naró e Ichua ouviram a leitura , sem entender nada além de um detalhe: Ela parecia ter encontrado algo importante. Naró colocou a mão em seu ombro. Ela entendeu, guardou o pergaminho em seu manto e apontou para cima. Ichua descordou com a cabeça, apontando para baixo. Sem saber como reagir, ambos olharam para Naró. A decisão parecia ser aleatória. Nada indicava qual caminho era o mais correto. Então, o discípulo de Atisuanã sentou no chão, a fim de meditar sobre essa decisão.
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No outro dia, Atisuanã despertou sozinho com o sol ardendo em sua nuca. No alto, urubus faziam círculos, esperando pela hora de se alimentarem. Algo parecia se agitar na mata.
- Ssssiii! - A voz de alguém que parecia querer sua atenção.
O feiticeiro olha ao redor e vê Quityambó escondido. O cacique aponta para o alto, mantém os olhos no curandeiro.
- Siriam!
Em seguida, coloca seu dedo indicador entre os lábios. Com apenas 3 passos, escala a árvore, até onde se encontrava Atisuanã. Após soltar as mãos do curandeiro e amigo, Quityambó segura a mão direita dele usando sua mão esquerda e corta o cipó que prendia o pé esquerdo com uma lasca segura pela mão direita. Isso de ponta-cabeça, pendurado no galho pelas pernas dobradas. Num movimento de extrema habilidade, usando o próprio peso do curandeiro formou um pêndulo que os colocou sentados no galho em que Atisuanã estava preso. Durante todo o processo, o mestre mantinha-se tranquilo.
- Como está, Quityambó? - Perguntou Atisuanã.
- Bem. Onde está Naró? - respondeu Quityambó.
- Não sei. Acredito que tenha fugido para a mata.
- Sim, pois na tribo não se encontra.
- Tanto melhor. Seu destino é enfrentar o coração obscuro da mata. Ainda é cedo, mas talvez não haja nova oportunidade.
- Acredita que ele tome a decisão correta?
- Meu amigo, a fé é tudo o que nos resta.
- Pois então vamos. Precisamos encontrar os outros.
- Já chegaram?
- Já chegaram!
Atisuanã, então, depois de um breve silêncio, balbucia algumas palavras e se joga do galho, caindo misteriosamente devagar, como uma pluma. Chama por Quityambó, que está no alto ainda, perplexo com o que viu.
- Não vem? Estou sem meu cajado, preciso do seu apoio! - Diz o mestre.
- Sim, claro!
E salta, rolando o corpo ao cair no chão para amortecer a queda. E os dois sábios somem rumo ao interior da mata.
continua quarta-feira, 11h da manhã (GMT-3:00 Brasília/Brasil)