O Velho

Caminhando...

quarta-feira, setembro 24, 2008

O Lótus - Capítulo I

Mistérios da floresta

A floresta era densa, escura. Já cansado da longa viagem, Naró só esperava encontrar uma área mais segura para descansar. Não dava realmente para ver se era noite ou dia e sua juventude denunciava a falta de experiência, apesar da coragem que esse membro da tribo Tiró demonstrava.

 

Seus olhos ardiam. Havia passado uma folha de efeito urticante na ferida de sua mão esquerda e, sem querer, esfregado a mão nos olhos na tentativa de se manter desperto. Agora, além da vista nublada, sua mão esquerda começava a inchar e latejar.

 

Veio à mente as palavras do Pajé.

 

- Não é necessário buscar o que já foi encontrado, filho.

 

Pobre Atisuanã. Para Naró, ficar sentado esperando não era resposta para a morte silenciosa. Esse era o nome da doença que estava matando metade da tribo e havia enlouquecido o cacique Quityambó. Esse grande chefe da aldeia, destemido, vencedor de inúmeras batalhas e que cuidava de todos com mãos paternas e vontade firme, não passava agora de um velho louco e sem memória. Sentado num canto de sua oca, com aquele olhar arrepiante, arregalado, ora balbuciando, ora berrando palavras numa língua que ninguém conhecia.

 

A doença era como uma visão. Quando acometido dela, em poucos minutos a pessoa estava morta. Parava o que estava fazendo, entrando num silêncio repentino e, como se visse algo fascinante, perdia toda a atenção no mundo real. Virava mesmo um morto-vivo. Então, ia parando, sentando... morrendo. Quityambó contava histórias em frente a fogueira, quando foi surpreendido pela morte silenciosa. Contava a história de uma mulher, uma sacerdotiza, Unmuki, que havia recebido o segredo da raiz dos espíritos, a bebida que a tribo usava, feita de um tubérculo encontrado no coração da mata, para falar com os mortos. Havia uma certa tristeza no olhar de Quityambó naquela noite, como nunca se vira antes. Contava a história e desfiava um pedaço de cipó, como  sempre costumava fazer, olhando para o chão. Volta e meia lançava as fibras do cipó ao fogo, que "estralava" ao queimar, com um barulhinho agradável.

 

No momento em que se esticou para apanhar uma das fibras mais próximas do fogo, a morte silenciosa o dominou. A inércia do movimento o fez perder o equilíbrio, e cair de peito sobre a fogueira. Todos os membros da tribo presentes levantaram-se prontamente para resgatar seu chefe.

 

Naquele momento, a doença só havia matado um menino e duas mulheres. Nenhum homem havia sido tomado por ela. Logo a pessoa mais admirada, o chefe respeitado e amado por todos, encontrava-se próximo da morte. Ele levantou-se, mudo, estático. Cheiro de carne assada vindo de seu peito. Sua mulher, Rashi, desesperada, apanhou uma cuia com água e lançou sobre o marido. Burburinho e preocupação. Todos de olhares atentos para seu líder. O que Tupã queria mostrar aos Tirós? O que eles haviam feito? É então que a expressão do cacique muda. Olha ao redor, sem nada responder. Rashi cobra a ajuda de seus dois filhos, que então erguem o pai e o carregam até a oca.

 

Próximo da entrada, Quityambó, num rompante, urge se libertar da proteção dos filhos. Vira-se e os encara. Seu olhar sempre paternal cede lugar a uma constelação de dúvidas e incertezas. Era quase uma criança assustada, mesmo mantendo a energia do grande chefe.

 

- Pai? - Pergunta Viniás, o mais velho, sem obter resposta.

 

O velho chefe começa, aos poucos, a recuar para o interior, como que acuado. Ichua, o irmão mais novo, segue o pai que lança contra ele pequenas cuias, ferramentas e adornos, todos os objetos que encontra a sua frente, para impedir a entrada. E assim era com qualquer um que tentasse entrar. Quando os objetos acabavam, passava a bravejar:

 

-  Siriam, narena rudia ka lestrina!

 

E não havia quem ousasse penetrar no interior. Não havia quem ousasse desobedecer o grande Quityambó, mesmo em sua loucura. E não por medo.

 

Naró parou para respirar.

 

- O sol deve estar quase se pondo - pensou.

 

Precisava acender uma fogueira. As palavras gritadas do cacique retumbavam em sua mente:

 

- Siriam, narena rudia ka lestrina! Siriam, narena rudia ka lestrina!

 

Não havia mais como esquecer, depois de uma lua inteira ouvindo-as. Era o único discípulo de Atisuanã, e passou a cuidar de Quityambó. O sábio Pajé parecia displicente. E se ele e Naró morressem? Quem irá proteger para as futuras gerações todo o conhecimento ancestral? Conhecimento esse que o pupilo mal havia começado a receber.

 

Tinha chovido há não muito tempo. Fazer uma fogueira seria difícil. Enquanto procurava gravetos secos, recordava um ensino do mestre:

 

- O fogo muda. É a própria natureza da mudança. Nunca é o mesmo, nem fica no mesmo lugar. E nada resta depois dele, além das cinzas leves das pesadas madeiras.

 

Quisera entender que fogo é esse que assomou sua amada aldeia. Mas a esperança era uma das virtudes de Naró e a situação era propícia para que pedisse orientação dos ancestrais. É para isso que carregava um pouco do chá da raiz dos espíritos em uma pequena garrafa. É para isso que tentava acender a fogueira: A viagem seria longa e seu corpo precisava manter-se aquecido. Mas os gravetos e folhas que encontrara não estavam secos o suficiente. Sentou-se sob uma árvore e procurou meditar um pouco. Talvez as respostas viessem num sonho. Tudo o que ele queria era a verdade, a cura da insanidade.

 

Fechou os olhos, mas o sono não vinha. Cigarras, sapos, corujas, cascavéis, insetos e outros sons dominavam o ambiente. Começou a se guiar pelos sapos, concentrando-se em seus coachares. Parecia enxergar as estrelas. Parecia  ver além de seus olhos mortais. Comprovou, assim, que a noite já havia se instalado e, nessa conexão, percebeu que o cansaço havia sumido. Uma luz piscante, como de uma fogueira, vinda do interior da floresta, chamou sua atenção. Seguiu-a. Conforme se aproximava, ouvia cada vez mais alto uma canção, de voz feminina. Linda voz. Suave. Hipnotizante. Ficou um instante a observá-la. Foi quando ela parou, como que se percebesse algo estranho e virou na direção dele. Naró se escondeu. Agachou-se e fechou os olhos. Percebia aquela presença fascinante cada vez mais próxima. Um arrepio lhe subiu a espinha. Quando então abriu os olhos, ela havia sumido. Temeroso, levanta-se e decide retornar ao ponto onde tentou fazer a fogueira. Mal se vira, está defronte dela. Linda, jovem, olhar doce e sereno. Não havia como não se encantar. Mas Naró não estava apenas encantado. Havia algo de familiar nela. Uma idéia seguida de uma confirmação assustadora lhe veio à mente, fazendo o ar escapar de seus pulmões. Repleto da mais pura surpresa, ainda encontrou ar suficiente para uma única palavra, o manifesto de seu espanto:

 

- Mãe??!

segunda-feira, setembro 01, 2008

... a mente

Transmutar: v.t. e p. Transmudar; alterar; transformar; fazer mudar de lugar; converter*.

 

Transcender a matéria. Transcender a mente. Quando a gente se pergunta: "Quando é que a dor vai cessar?", está, na verdade, perguntando: "Quando é que o sofrimento vai cessar?". Ambos estão intimamente ligados, enquanto a matéria for prioridade. Enquanto não se encortra o "SER".

 

Tudo isso acontece dentro dos domínios da mente humana. Resta ir além, acreditar que realmente há algo além. Abandonar o pensamento medieval de que a terra é quadrada, limitada por abismos em suas extremidades que levam ao vazio, ao caos. O universo é infinito, e não sabemos (ainda) o que é o "infinito". No entanto, temos uma idéia vaga mas suficiente para concluir que a mente não é o estágio final do SER.

 

O que é que está além da mente? As vivências e os mestres concluem que é muita, muita coisa. Uma delas é a

consciência

A mente, sendo material, controla as necessidade materias, que são importantes. A consciência gera confusão na mente, quando coloca, por exemplo, que se deve ajudar o próximo sem esperar recompensa. Para a mente, isso não faz o menor sentido. É por isso que os Yogues buscam o silêncio mental, o vazio. A mente se cala para escutar seu "mestre", a consciência.

 

É para isso que estou transmutando agora. É por isso que estou numa fase de auto-disciplina mental, de auto-conhecimento: Para me harmonizar com a consciência e descobrir, futuramente, o que está além dela. E descobrir também o que é que está além do que está além dela, humildemente aceitando meu estado, sem ser superior a ninguém, mas, igualmente, não o sendo inferior.

 

E como o que está dentro reflete-se no que está fora, essa transmutação será visível de diversas formas. Aqui mesmo. E em todos os lugares.

mago-full

 

* Fonte: minidicionário Silveira Bueno da língua portuguesa